A critica literária de Fernando Pessoa sobre a “Romaria”: elogio ou ironia?



A opinião de Fernando Pessoa sobre a obra e a figura de Vasco Reis não é pacífica. O autor da Mensagem escreveu mesmo sobre A Romaria, livro que tinha ficado à frente daquele no concurso do SPN de 1934. Mas enquanto que no website "Um Fernando Pessoa" se refere que esta “crítica, honesta e subtil, parece prova evidente de que [Pessoa] não guardara rancores do prémio que lhe fora a ele mesmo concedido”, já José Blanco, num ensaio intitulado “A verdade sobre a Mensagem” aponta para o sentido oposto:

E, se Fernando Pessoa ficou por ventura melindrado com a decisão do júri, vingou-se, com luva branca, do seu “rival” e co-premiado Vasco Reis, publicando no Diário de Lisboa, de 4 de Janeiro de 1935, uma crítica generosamente elogiosa (como eram, normalmente, as que fazia aos livros de amigos e conhecidos).

Como em regra acontecia nos seus escritos de crítica literária, o verdadeiro intuito deste texto era denegrir, uma vez mais, duas das suas bêtes-noires: a Igreja Católica, em geral, e o catolicismo português, em particular, a que chamou “meiguice religiosa, preguiçosamente incerta do em que realmente crê”. O Padre Vasco Reis, escreve Pessoa, “a quem Deus fez ser franciscano para fins simbólicos – pertence portuguêsmente a este catolicismo amoroso”. Os louvores à obra seguem depois destas linhas assassinas...

Deixamos aqui um fragmento da crítica de Pessoa dirigida à Romaria, para que o leitor destas linhas possa decidir por si quando ao verdadeiro intuito do poeta:

“Em seu paganismo cristianíssimo, em seu sobrenaturalismo humano, esse poema é organicamente português.
O poema é cristão no sentido particular de católico e por isso mesmo é pagão.

[...] Entre os portugueses, em quem, em meu entender a emoção supera a  paixão – e é isto, creio, o que radicalmente, nos distingue dos vários espanhóis – o catolicismo assume naturalmente o que poderemos chamar o aspecto franciscano, que é, por assim dizer o aspecto essencialmente emotivo do cristianismo católico.

[...] O padre Vasco Reis – a quem Deus fez ser franciscano para fins simbólicos – pertence portguêsmente a este catolicismo amoroso. O seu livro, fortemente concebido e suavemente realizado, vive uma atmosfera e ternura e de luz, como uma Hélade de bruma molhada de sol. Não conheço livro, em prosa ou verso, que interprete tão pagãmente, tão cistãmente, a alma religiosa de Portugal. E por trás disto tudo paira – fundo contra que o visível se destaca – qualquer coisa de imprecisamente emblemático, coordenadamente incerto, com que se comove não propriamente a emoção, mas a inteligência. Isso, porém, já não é Portugal: é talento.”

PESSOA, Fernando, “A Romaria”, in Apreciações Literárias. Bosquejos e Esquemas Críticos, Aveiro, Editora Estante, 1990, p. 41-42. Publicado originalmente in Diário de Lisboa (Suplemento Literário), Lisboa, 4 de Janeiro de 1935.

Na imagem: cena do filme “Poesia de Segunda Categoria”. Durante a cerimónia de entrega dos Prémios Literários 1934 do SPN, António Ferro (interpretado por João Didelet) pede a Cecília Meireles (interpretada por Diana Costa e Silva) que leia um poema de Vasco Reis.