Sobre o nome do Prémio de Poesia (Antero de Quental) do SPN: um outro paradoxo?


No ano em que se comemora o 170º aniversário do nascimento de Antero de Quental, uma questão de pronto nos assalta: como é que alguém que escreveu um texto como Causas da Decadência dos Povos Peninsulares nos últimos três Séculos teria reagido se soubesse que um prémio de poesia com o seu nome fora atribuído a um livro como a Romaria?




Ainda por cima patrocinado por um organismo de um Estado ditatorial e conservador, corporalizado a partir do derrube do liberalismo republicano, da qual sairia em 1933 um novo regime assente num nacionalismo tradicionalista e conservadorismo ruralizante.


Enquanto instrumento central de intervenção da chamada “Politica do Espírito”, o Secretariado de Propaganda Nacional (SPN) corporaliza a mais diligente e continuada tentativa de definição da posição do Estado Novo no campo literário. Anunciados no final de Novembro de 1933, os Prémios Literários relativos a 1934 (distribuídos no ano seguinte, em 21 de Fevereiro de 1935), inauguram um mecanismo do SPN de “regulação do campo literário” (Pinto 2008, 70). O Prémio Eça de Queirós (Romance), O Prémio Antero de Quental (Poesia), o Prémio Ramalho Ortigão (Ensaio), o Prémio Alexandre Herculano (História) e o Prémio António Enes (Jornalismo; posteriormente, Jornalismo – Doutrina ou Polémica) são os que vigorarão desde o início.

Sobre os vectores ideológicos do Estado Novo, refere Rui Pedro Pinto que “O catolicismo integrista de raiz neotomista, que influenciaria determinantemente o pensamento de Salazar – fundamentando um corporativismo respeitador dos grupos naturais, assente numa utopia conversadora de ordem tradicional, em que a religião católica se fundia com a identidade nacional do Pais -, concedia efectivamente uma primazia aos valores espirituais, procurando limitar a acção do Estado pela moral católica” (Pinto 2008, 17).

Como já foi referido por diversas vezes neste blog, enquanto a Mensagem, resultado da “atitude negativa relativamente ao catolicismo” de Pessoa (Onésimso T. Almeida 2007, 207-208), é um poema de interpretação ocultista e simbólica de dimensão marcadamente esotérica (opondo-se assim ao cânones oficiais da Igreja), já a Romaria, do padre Vasco Reis, conta a história de um bolchevique que se converte ao catolicismo.

Influenciado pelo socialismo experimental de Proudhon, enaltecendo a revolução, tendo sido um dos fundadores do Partido Socialista Português, Antero é marcadamente anti-católico e politicamente afecto a um ideário liberal de esquerda centrado na ilustração, na tolerância e na liberdade de expressão. Num ensaio intitulado “O discurso anteriano e a questão laica na Quanta Cura de Pio IX” (Revista de História das Ideias, vol. 13, 1991) , Maria Fernanda Enes (da Universidade dos Açores), suportada pelos contributos de Joel Serrão sobre esta matéria, dá-nos conta do seguinte:

“Antero de Quental, com o seu escrito Defesa da Carta Encyclica de Sua Santyidade Pio IX contra a chamada opinião liberal – considerações sobre este documento publicado em Coimbra em 1865, inscreve-se no número de pensadores laicos que denunciam a Igreja Católica como instituição imóvel e estruturalmente oposta ao ideário liberal.

[...] No dizer de Joel Serrão, o pensamento sócio-político de Antero, por volta de 1865, ‘é caracterizável pelo republicanismo, pelo anarquismo, pelo ateísmo e sobretudo ele é cimentado pela aspiração de justiça’. [...] Em 1862 em A Indiferença em politica ao condenar a reacção cristalizada na vaga missionária, então denominada de jesuística, afirmava já que a liberdade é a ‘primeira condição de toda a moral e de toda a justiça’. 1862 é também a data da publicação do artigo Questão Romana. Aí afirma o confronto entre o passado e o presente, a antiga e nova ordem, que nela se verifica: ‘é o pleito entre o obscurantismo, a intolerância e a tirania, universais inimigos do homem, e a ilustração, a tolerância e a liberdade’.”

Na imagem: manuscrito do “Soneto Redenção” de Antero de Quental
Link da obra de Antero de Quental digitalizada na Biblioteca Nacional (BN) aqui