A rodagem do discurso de Salazar
Uma das cenas mais sensíveis do filme “Poesia de Segunda Categoria” é o momento em que Salazar profere o seu discurso na Festa de entrega dos Prémios Literários 1934 atribuídos pelo Secretariado de Propaganda Nacional. O autoritarismo e a rigidez deste discurso estão visualmente traduzidos na cena através de um enquadramento estático e de um plano contra-picado que são constantes. E a opulência e a monumentalidade do espaço, a forte incidência de diferentes focos de luz, as esfuziantes saudações à romana feitas por uma plateia recheada de pessoas ilustres, dão ao ditador a centralidade da festa e vincam a sua condição de líder.
O seu semblante grave, altivo, mesmo autoritário
(particularmente evidenciado no modo fulminante como, só pelo olhar, censura e
cerceia alguém cuja tosse o interrompeu), o declarado dirigismo das suas
palavras relativamente ao papel dos escritores (diz que é preciso impor-lhes “limitações” e “directrizes”
em nome dos “princípios morais e patrióticos”), o desdém sobranceiro ante uma actividade literária prolixa e
independente (“Virá algum mal ao mundo de se escrever, menos, se se escrever e
sobretudo se se ler melhor?” ), o paternalismo irónico e acusador relativamente
àqueles que muito produzem e lêem literatura (“Relembro a frase de Séneca: em estantes altas até
ao tecto, adornam o aposento do preguiçoso, todos os arrazoados e crónicas”)
substanciam uma mensagem clara.
A sua condição algo majestática, afirmativa e auto-confiante
afasta-o, assim, neste filme, um pouco do estilo do padre contido com “voz de
velha”, tal como muitas vezes foi descrito, aproximando-o, ao invés, dos
modelos fascistas italianos e alemães coevos. Este é um Salazar ainda
relativamente jovem, triunfante, entusiástico e enérgico para com o alto
desígnio de reconstrução nacional cuja liderança ele corporaliza. Ele incarna a
imagem do guia e herói da Nação, construída pela moldura da propaganda que
António Ferro concebera.
O que nos parece ressaltar das palavras fielmente citadas de
Salazar é a manifestação pública de um projecto de dominação do Estado Novo
transversal a todos os sectores da sociedade. Estado Novo esse que acabado de
ser instaurado e em processo de clara afirmação, procura deliberada e
abertamente restringir o grau de autonomia relativa do campo cultural.
Imagem: Foto da rodagem do filme. O actor Paulo João (que
interpreta Salazar) rodeado pela equipa de realização e de produção prepara-se
para o take seguinte.