A Arca dentro da Arca: o poder do mistério
‘Ó Fernando, é um crime você continuar ignorado’. [...]
‘Deixem estar, que, quando eu morrer, ficam cá caixotes cheios’”.
Cartas de Amor de Fernando Pessoa,
Lisboa, Ática, 1978, pp. 14-15.
Em visita à exposição Fernando Pessoa, Plural como o Universo que esteve patente na Fundação Calouste Gulbenkian,
em Lisboa, entre 10 de Fevereiro e 6 de Maio de 2012,
confirmou-se a centralidade que a Arca detém na imagética pessoana. Nesse
contexto, um conjunto de fotografias tiradas na exposição geraram, entre nós,
uma inquietação sobre o papel e o seu estatuto.
Em concodância com os trâmites legais, só em 2005, ano em
que se comemorou os 70 anos da morte do poeta, é que a obra de Fernando Pessoa
caiu definitivamente no domínio público. Disso nos deram conta, por exemplo,
Steffen Dix e Jerónimo Pizarro, os editores do livro que levou o significativo
título “A Arca de Pessoa”, editado em 2007 pela Impressa de Ciências Sociais.
“Neste contexto, a referência à mítica arca tem um valor duplo: por um lado, lembra os
originais ali depositados – hoje conservados na Biblioteca Nacional, a maior dos
quais contínua inédita -, e, por outro, serve de convite para que outros
investigadores explorem esses escritos agora que qualquer ‘pessoa’ pode
publicar ‘Pessoa’”.
Mas avisam-nos Dix e Pizarro: “Ao contrário de muitos
escritores, Pessoa é um autor que depois de setenta anos, e talvez ainda por
outros setenta, continuará a ser notícia por causa dos seus inéditos, já que
estes se contam por milhares.”
A partir destas palavras citadas, poderíamos dizer que o
mistério ainda continuará. Actualmente não já devido, arriscamos, à aura ou ao
sindroma do “encoberto” estrategicamente montado pelo próprio Pessoa em vida
(vide a nossa epígrafe), mas agora em razão do carácter prolixo, fragmentado e
disperso da sua obra; o desconhecimento já não é efeito da rarefacção, mas
antes de uma excesso que ofusca e esmaga quem o pretende dominar.
O certo é que
Pessoa parece ter usado deliberadamente um poderoso dispositivo de sedução.
Pois à semelhança da imagem mitigada do Rei morto em Alcácer Quibir que o içou
para uma posteridade pairante, o “encoberto” ou a aura de mistério que tolda
qualquer coisa independetemente daquilo que seja (pode até ser a figura de um
jovem imberbe e louco, cego por ambição desmedida e irresponsável, para lembrar
os posicionamentos críticos do republicano racionalista António Sérgio), gera
sempre curiosidade, um fascínio, uma vontade irrepremível de desvelar. Numa
palavra, o oculto alimenta o desejo.
É curioso notar que depois da Arca aberta esse desejo não
ter esmorecido. Antes pelo contrário.
Na imagem: a Arca de Fernando Pessoa, exibida, em 2012, no Museu Guklbenkian, Lisboa. Fotografia de Luís Vaz.