Fernando Pessoa e Fausto



Numa das cenas iniciais do filme “Poesia de Segunda Categoria”, Fernando Pessoa varre com o olhar a sua densa estante, procurando uma fonte de inspiração para a escrita de um poema inacabado. Algo o direcciona para um grosso volume de lombada vermelha e com inscrições a dourado. É o Fausto de Goethe!

No website Arquivo Pessoa, encontrámos alguns textos inéditos do poeta dedicados a este personagem: “FAUSTO: - Não descreio de Deus, passei p'ra além...”; “Plano dos Três Faustos”,  “Primeiro Fausto” (de Bernardo Soares); “Primeiro Fausto. O conjunto do drama representa…”, “Primeiro Fausto. Um dos entreactos é composto…”, “Primeiro Fausto”, “Primeiro Fausto. – Segundo Fausto”.

Uma passagem particular ficou-nos na memória:

No 1º acto, a luta consiste em a Inteligência querer compreender a Vida, sendo derrotada, e compreendendo só que não pode nunca compreender a vida. Assim, este acto é todo disquisições intelectuais e abstractas, em que o mistério do mundo (tema geral, aliás, da obra inteira, pois que é o tema central da Inteligência) é repetidamente tratado. [“Primeiro Fausto. O conjunto do drama representa…”]

Nesta relação de Pessoa com a figura de Fausto, parece emergir uma tensão dialéctica entre o culto do mistério e a busca da chave do enigma. Ana Maria Albuquerque Binet escreveu sobre o assunto, lançando algumas pistas que nos parecem dignas de atenção:

“Com efeito, toda a obra de Pessoa testemunha a busca da ‘única realidade que é o mistério’ (Álvaro de Campos), do desespero, que Fausto encarna, face à inacessibilidade desse mistério (Fasto, 1988, p. 57)

            O mistério do mundo,
            O íntimo, horroroso, desolado
            Consiste em haver esse ou um mistério!

Alberto Caeiro responde ao desespero com a raiva proveniente da certeza quanto à ausência de sentido (Poemas de Alberto Caeiro, 1978, p. 61).

O mistério das coisas, onde está ele?
            Onde está ele que não aparece
            Pelo menos a mostrar-nos que é o mistério?

            Porque o único sentido oculto das coisas
            É elas não terem sentido oculto nenhum,
            É mais estranho do que todas as estranhezas
            E do que os sonhos de todos os poetas.

“[...] no domínio de um pensamento esotérico que nos interessa especialmente aqui, podemos dizer que o platonismo estrutura a reflexão ontológica e cosmológica de Pessoa, sendo uma das principais fontes do seu pensamento esotérico, visto ser o ponto de partida filosófico das grandes correntes esotéricas, para as quais à realidade aparente corresponde outra, encoberta ao olhar profano, pois, como escreveu Tertuliano (pp. 155-222), que Pessoa cita várias vezes, ‘as coisas encobertas, uma vez descobertas, ficam destruídas’. Consequentemente, Pessoa parece desistir de uma forma de busca espiritual, afirmando que não vale a pena tentar desvendar o mistério: ‘Não procures nem creias: tudo é oculto’ (Poesias, 1967, p. 218).
            No entanto, a sua vida e a sua obra testemunham o contrario: a tentativa de encontrar a chave do grande enigma escondido atrás da banalidade dos dias foi certamente uma das preocupações centrais da sua vida.”

Ana Maria Albuquerque Binet, “A obra de Fernando Pessoa – uma galáxia de ‘esoterismos’?”, in A Arca de Pessoa (org. Steffen Dix e Jerónimo Pizarro), Lisboa, ICS, 2007, pp. 179-182.

Na imagem: fotograma do filme “Poesia de Segunda Categoria”.